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Há muito tempo atrás, antes de terem nascido políticos que, por incapacidade própria e sem ideias para uma governação justa, sugerem aos portugueses que saiam do país onde nasceram se quiserem encontrar uma vida melhor, já os portugueses rumavam às centenas para outras paragens, na tentativa de escapar a uma vida quase certa de pobreza e miséria. Portugal é, desde há mais de dois séculos, um país de emigração.

 

Quando é forçada, a emigração não tem necessariamente algo de bom. Durante a revolução industrial, quando famílias inteiras saíam do campo para as cidades, elas não o faziam simplesmente porque lhes apetecia. Na cidade estava a promessa de arranjar um trabalho que lhes permitisse juntar algum dinheiro, e a partir daí fugir às difíceis condições de vida no campo, e à dependência de uma agricultura pouco mecanizada e sujeita às agruras do clima. Escusado será dizer que nem todos o conseguiam, e vários morriam quer de doenças derivadas do trabalho que tinham, quer da falta de condições sanitárias na cidade.

 

Os relatos de como a maior parte das pessoas vivia em Portugal até há 50 a 100 anos atrás são impressionantes. Nas zonas rurais, as casas, habitualmente de uma só divisão, eram pequenas, pouco arejadas e pouco luminosas, extremamente desconfortáveis, tinham paredes e tecto de má qualidade, e o chão de terra batida. Famílias inteiras dormiam no mesmo espaço, uma espécie de cama improvisada com barrotes de madeira. As condições de higiene eram péssimas, e só no sul do país se podiam encontrar excepções a esta regra. A vida nas cidades não era melhor, e a estas condições precárias juntavam-se ainda os problemas da concentração de muitas famílias em casas e vilas operárias superlotadas, quando não em barracões imundos, situação que, aliás, se prolongou até há não muito tempo.

 

Com estas perspectivas de vida, quem não quereria emigrar na esperança de melhorar a sua situação? A França, que desde o século XVIII foi a maior referência cultural portuguesa, surgia como um dos destinos europeus mais apetecíveis na segunda metade do século XX, para além de outros países francófonos. Apostando no desenvolvimento do país depois da destruição provocada pela II Guerra Mundial, oferecia empregos que não existiam em Portugal, onde o dinheiro e as preocupações passaram a estar centrados em perpetuar uma guerra pela posse de um império que, na verdade, nunca o chegou a ser, e cuja principal função foi a exportação de negros escravizados nas plantações do Brasil.

 

O filme de Rúben Alves, também ele filho de emigrantes portugueses em França, simboliza o que foi a emigração em massa durante os anos 60 e 70 do século XX: com baixas qualificações académicas mas uma grande vontade de trabalhar e juntar dinheiro para dar aos filhos aquilo que não se teve em vida, os portugueses chegavam a um país estrangeiro para serem frequentemente operários da construção civil (os homens) ou porteiras de prédios (as mulheres), e prestarem-se geralmente a serem discriminados pelos franceses devido à sua falta de civilização em comparação com a Europa dita civilizada. Os filhos destes emigrantes vivem, assim, entre dois mundos culturais: têm as raízes portuguesas na língua que provavelmente falam em família, na terra a que voltam durante o mês de Agosto, e sobretudo na comida, naquele bacalhau cozido com batatas e regado com bom azeite; mas as suas referências culturais são quase todas francesas, porque é em França que normalmente nascem, crescem, estudam e adoptam uma língua que influencia a maneira como pensam e se exprimem. E assim vivem, entre o complexo ou mesmo a vergonha de ter raízes portuguesas, o que é compreensível dada a percepção externa dos outros países sobre nós, e a impossibilidade de serem portugueses, pois o estado que os devia apoiar trata-os como cidadãos de segunda, desprezando-os: os cerca de cinco milhões de portugueses e lusodescendentes que vivem noutro país (o equivalente a um terço da população portuguesa!) apenas podem eleger quatro dos 230 deputados do parlamento. Em que mundo é que isto faz sentido?

 

A tarefa de Rúben Alves não era nada fácil. Falar de uma experiência marcante, pessoal e complexa como esta envolve encontrar um equilíbrio entre a imagem que temos de nós próprios e a imagem que os outros têm de nós, sem ceder a exageros dissonantes ou discursos condescendentes. O incrível é que o filme A Gaiola Dourada consegue fintar todos estes perigos e apresentar uma caricatura do português emigrado tão bem-humorada e despretensiosa que se torna impossível não gostar dela. Sejamos emigrantes ou não, vivamos em França ou noutro lugar do mundo, conseguimos identificar aquelas características boas e más que nos tornam diferentes dos outros povos e de que secretamente gostamos, mesmo que não o queiremos admitir.

 

O sucesso que o filme tem tido em Portugal e em França também se deve ao elenco escolhido, que está exactamente onde devia estar. Nem é possível sequer imaginar melhores actrizes para os papéis de Rita Blanco ou Maria Vieira. E é, ainda, - é preciso dizê-lo - o justo apreço e projecção internacional dada ao valor de Rita Blanco, que continua a ser a melhor actriz portuguesa da actualidade. Rúben Alves não podia ter começado da melhor maneira, e a boa recepção do filme nem é caso de grande admiração. Há quarenta anos que Portugal e todos os portugueses estavam à espera deste filme. Ou dito de outra maneira, ainda bem que nasci nesta altura!

A Gaiola Dourada

TRAILER do filme A GAIOLA DOURADA

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