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Dizia Ortega y Gasset que, ao contrário do misticismo, ou, podemos dizer nós hoje, da mistificação, a filosofia gostaria de ser o segredo em voz alta. E se é verdade que o pensamento escancara muitas vezes as portas dos segredos que nunca nos atrevemos a reconhecer em nós próprios, é não menos verdade que há uma forma muito mais perigosa de fazê-los sair, uma forma que também envolve a violência da voz alta: a frustração de acabar sempre por ficar aquém de nós. A falta de consciência pode levar a uma vida mais sossegada, mas não pode nada contra a frustração. A frustração é um furacão que consome tudo e todos à nossa volta, e não deixa ninguém escapar ileso. E pode começar de uma forma tão simples como uma ida ao supermercado que corre mal: um homem frustrado entrega-se à febre consumista para aliviar a sua frustração, traz um monte de coisas inúteis para casa, fica ainda mais frustrado quando repara nisso, e finalmente descarrega na mulher e no filho. Isto é mais verosímil que a entrada do FMI em Portugal.
 
Rodrigo García, o autor do texto que dá corpo à peça AGAMÉMNON, conhece os meandros da mente humana. Ele sabe como os supermercados, as catedrais do século XXI, podem perfeitamente desencadear uma fúria parecida a um qualquer fanatismo futebolístico. Não há nada a espantar aqui, já que tudo nos super-, hiper- e mega-mercados é uma receita para o desastre: a maneira como os carrinhos chiam teimosamente enquanto nos arrastamos pelos corredores, como as pessoas chocam connosco sem pedir licença, como os preços se deformam para parecerem mais baratos, como as luzes brilhantes nos enjoam os olhos e atrasam os sentidos, como a musiquinha-de-elevador irritante, sempre alta ou baixa demais, nos empurra no labirinto de prateleiras, como as coisas que precisamos se agarram a coisas que não nos fazem falta nenhuma, como os produtos estão ordenados para nos confundir e reter o maior tempo possível, e nos fazer gastar o mais possível, ou como os empregados parecem ter o ar mais infeliz deste mundo; tudo nos super-hiper-mega-mercados está lá para nos lembrar a quantidade de merda que a humanidade é capaz de concentrar num só lugar, depois de séculos e séculos de guerra, poesia e história.
 
Será possível não detestar um sítio assim? Será possível que nos deixemos de sentir ratos de um laboratório cujas experiências desconhecemos? Se Kafka percebeu como a burocracia transforma o homem num animal, Rodrigo García conseguiu perceber como o capitalismo transforma o bicho-homem numa máquina amorfa, confusa e assustada – em suma, num raivoso à beira da loucura. García sabe do que fala: ele próprio foi um publicista, e um publicista sabe, melhor que ninguém, como a publicidade é a proxeneta do capitalismo. O capitalismo é já desumanizador que chegue, mas, como se isso não bastasse, ainda resolveram inventar técnicas rápidas e fáceis para enganar a humanidade inteira, e criar-lhe necessidades que não tem e desejos que não sente.
 
Vivemos na mentira e da mentira, e sobrevivemos pela mentira parasitando aqueles que se alimentam de mentira, como nós. Mas quando a mentira é tão forte e está tão entranhada na nossa carne e na comida que comemos, a verdade só é verdade se for cuspida na cara de cada um. Esta é a chave para entender a dinâmica de García, e esta é também a chave para compreender a dimensão do trabalho de encenação de John Romão e o funcionamento do grupo que dirige juntamente com Mickael de Oliveira, o Colectivo 84. O que mais espanta em AGAMÉMNON não é a linguagem crua e directa de García, que aliás está traduzida de uma forma perfeita para a nossa língua, mas o facto de ser a primeira vez que este dramaturgo contemporâneo é encenado em Portugal. A que se deve esta falta? O que poderá ser mais importante que isto? O Colectivo 84 está de parabéns, não só por ter dado a conhecer a força e a actualidade de García, mas, sobretudo, por ter procurado, e continuar a procurar, com as suas peças, criar uma ponte para o mundo concreto e real em que vivem os seus espectadores, um mundo livre de academismos bacocos sem pinga de utilidade. Esta abertura e atenção são coisas que não se vêem todos os dias, e às vezes nem sequer em pessoas a quem chamamos amigos.
 
Mas García não se fecha na frustração. Ele também reconhece como a esperança pode nascer no meio do mais fundo desespero, e John Romão conseguiu trazer à luz essa ambivalência tão humana e tão frágil através de Gonçalo Waddington, o actor que sintetiza toda uma humanidade manipulada e confusa, e que acaba por se entregar, também ele, à manipulação daquilo que pode controlar melhor, a sua própria família, porque nunca o deixaram viver em liberdade. Quem vive em violência só pode gerar mais violência, e essa é a razão para a verdadeira tragédia começar em casa. De erro em erro, tacteando às cegas num mundo entupido de estimulações sensoriais, o patriarca resolve compensar a família com um jantar num qualquer MacDonalds de auto-estrada, mas nem nessa tarefa ele consegue sair-se bem, e vai parar a um KFC. Quando a poesia surge à beira da estrada, a poesia que só pode surgir da ligação que cada um de nós partilha com a natureza, por debaixo de todas as camadas tecnológicas com que nos pintaram; quando nesse limite de alienação tudo pára e ficamos a sós com a nossa carnal natureza: aí, tudo parece possível, até mesmo a reflexão sobre os grandes problemas do mundo.
 
Conheci e conheço muitas pessoas como este Agamémnon moderno. São pessoas que se entregam à velocidade da vida sem pensar, e que vivem freneticamente para não estarem sós e perceberem o quanto miserável é a sua própria vida. O teatro, este teatro, poderá ser-lhes útil de uma forma que nem lhes passa pela cabeça. Ele pode dar-lhes o tempo que não têm para si, e mostrar-lhes as coisas de que passam a vida a fugir. O teatro pode e o teatro deve falar a língua que as pessoas falam hoje, e não há dúvida de que este o faz. Na verdade, ele até faz mais que isso: num assomo de caridade para com os académicos deste mundo, aqueles que vão ao teatro, ele faz a ligação entre referências eruditas e a actualidade dos últimos vinte anos. García é generoso. Será que assim eles já conseguirão distinguir o que é essencial do que é acessório? Só uma conclusão é possível: Rodrigo García e o Colectivo 84 estão aí, e vieram para ficar.

Agamémnon

- vim do supermercado e dei porrada ao meu filho

© Susana Paiva

TRAILER de AGAMÉMNON - vim do supermercado e dei porrada ao meu filho

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