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O que é o mal? Um pecado, uma tentação, um diabo exterior a nós soprando coisas terríveis ao ouvido? O mal é o que de mais profundo e essencial existe no homem: a tendência para a corrupção, a auto-desagregação e a auto-decomposição do seu corpo (Miguel Real, 2012). O bem não passa de um equilíbrio precário que sustém transitoriamente a grande e universal marcha do mal. O que o novo espectáculo do Colectivo 84 EU NÃO SOU BONITA. EU SOU O PORCO. nos propõe é a análise do mal em estado puro, a análise do princípio que comanda a dissolução física e psicológica de um ser.

 

A representação mental do mal forma-se em nós desde a infância, como indica Jung, através do medo da desagregação familiar (morte dos pais), ou do medo de qualquer outra carência ou violência aplicada ao nosso corpo ou à nossa mente. Mas há uma forma extremamente perversa de mal, uma forma tão mais perigosa quanto mais passa despercebida sob a superficialidade de uma sociedade como a nossa, excessivamente política e socialmente correcta, uma forma que também começa na infância e sem que nos demos conta: a diferenciação social do nosso sexo e do nosso género.

 

Quando entra para a escola, o lugar que marca não só mais uma etapa do seu desenvolvimento social, como diz Erikson, mas que inaugura verdadeiramente a sua entrada na sociedade, a criança inicia, qual Cristo moderno, um longo caminho de violência em que é repreendida e subornada, medida e comparada, moldada e disciplinada, até chegar ao seu calvário, que muitas vezes tem a aparência atraente e asséptica de um belo escritório de empresa privada ou fileira de repartição pública. Depois de entrar na linha de montagem que a transformará no mais feroz dos soldados, se não for atirada para o lixo como peça defeituosa, ela aprende que há uma sublime e lógica razão para que os meninos vistam bibes azuis e as meninas vestidos cor-de-rosa, uns brinquem com carrinhos e outras com bonecas, uns sejam machos conquistadores e outras fêmeas devotas, uns sejam activos e outras passivas; enfim, que uns sejam os dominadores e outras as dominadas. A razão é que o mundo foi feito à medida de quem tem pénis, e não há maneira nenhuma de o alterar.

 

Portugal, como qualquer país da Europa do sul que se preze, onde o catolicismo criou raízes e a contra-reforma as fortificou e multiplicou em aparatosos autos-de-fé, afasta-se da ética protestante dos países da Europa do norte que, como mostrou Weber, ajudou ao seu desenvolvimento social, cultural e económico. Assim, enquanto na Finlândia corpos de mulheres e homens nus de qualquer idade podem conviver com a maior das naturalidades num espaço tão pequeno como o de uma sauna, em Portugal os corpos permanecem cobertos, fechados a olhares indiscretos, quantas vezes estranhos até de si próprios, objecto de pudor e de vergonha, tantas vezes dissimulada, e abertos à totalidade das perversões que só o trauma e os recalcamentos podem explicar.

EU NÃO SOU BONITA. EU SOU O PORCO. é um espectáculo a duas vozes. Nele, os actores John Romão e Solange Freitas dão o corpo e a cara aos dominadores e aos dominados. E há uma sensação que atravessa todo o ambiente negro da sala. É que seja na selva do Ruanda, numa rua de Lisboa, ou em qualquer praia do mundo, o mal está lá sempre: o dominador, esperando a hora de atacar; a presa aguardando, na sua inocência, e sem o saber, a hora de ser atacada. O mal pode ter muitos corpos, mas tem sempre a mesma cara. E no preciso instante em que o predador cai sobre a presa, é esse o momento em que a inocência chega ao fim. Para nunca mais voltar. É o momento em que percebemos como o mundo realmente funciona.

 

A arte não antecipa apenas a ciência, como defendeu Jonah Lehrer. A arte caminha à frente do presente e mostra-nos o futuro, ou antecipa-nos o que o futuro nos pode vir a trazer. E se pensávamos que o escandaloso abuso de menores na Casa Pia de Lisboa era coisa do passado, por mais mal resolvido que ele tenha ficado, a vida mostra-nos como a verdadeira arte nunca se engana: no dia 12 de dezembro de 2012, dia em que o espectáculo de John Romão estreou em Lisboa, estala a notícia de que a Procuradoria-Geral da República vai abrir um inquérito com base nas denúncias de Catalina Pestana, ex-provedora da Casa Pia, que diz conhecer, só na diocese de Lisboa, cinco casos de abusos sexuais de menores por parte de membros da igreja (jornal Público, 12/12/2012). Coincidência macabra ou revelação artística? Acima de qualquer especulação, prova de como o mal espreita entre nós e pode sempre voltar a atacar.

Eu não sou bonita. Eu sou o porco.

© Susana Paiva

TRAILER de EU NÃO SOU BONITA. EU SOU O PORCO

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