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Portugal está morto. Portugal morreu como país. Esta afirmação pode ser considerada de alguma forma excessiva ou despropositada, mas, na verdade, ela não passa da constatação de uma realidade que nos acompanha há séculos. Portugal morreu, e já era altura de assumirmos isso de uma vez por todas.

 

Portugal vive um grande eclipse de si próprio. A grande diferença entre este e outros eclipses é que o nosso deixou de ser temporário, arrastando-se indefinidamente. Tudo o que é hoje Portugal cheira a podridão e morte. Como nos mostra John Romão, num quadro sintetizador do espectáculo MORRO COMO PAÍS (2010), os principais marcos da cultura portuguesa desapareceram, morreram, ou perderam a sua credibilidade. As glórias dos Descobrimentos são hoje parte de um passado incompreensível, de tão próspero que chegou a ser. A fé já não é um elemento organizador da sociedade e os traços de espiritualidade presentes no ideal de caminharmos em direcção à gratuitidade da vida, que é a ideia central do Quinto Império, desapareceram debaixo de uma enxurrada de individualismo americano e consumismo desenfreado. Nem a tecnologia ou o progresso nos interessam mais para além do último modelo de telemóvel ou computador. Tudo se desmoronou diante dos nossos olhos, e quase ninguém compreendeu o verdadeiro significado disso.

 

MORRO COMO PAÍS (2010) mostra-nos que esta apatia relativamente ao rumo que Portugal tomou pode manifestar-se de duas formas extremas: ou por uma ironia cínica, que é sintoma de um desencanto e desinteresse absoluto em relação aos destinos da nossa cultura; ou, em oposição, por um desejo perverso de ser colonizado pelas potências económicas que triunfaram na corrida globalizada do capitalismo neoliberal. A privatização de todos os bens e serviços, da cultura às condições de subsistência mais básicas, como a electricidade e a água, que constituem monopólios de lucro certo por escaparem à própria competição capitalista, será o último estádio da morte de Portugal. Poderemos então descansar finalmente nas mãos dos outros, preocupando-nos apenas com a definição dos nossos abdominais, a marca do nosso carro, e o número de metros quadrados das nossas casas, entregando-nos alegremente a ser explorados de todas as maneiras possíveis e imaginárias por pessoas que trocaram as suas cabeças por máquinas de calcular com doze dígitos.

 

A destruição da cultura conduz à autodestruição individual. O corpo dos actores reflecte isso mesmo. Sem ideias nem ideais de comunidade, cultura ou educação, eles reduzem a sua existência ao mínimo de civilização: uns copos, um dia na praia, uma noite na discoteca, ou um hit recente de Verão tipo Lady Gaga, daqueles que já ninguém se lembra passados dois ou três meses. Subjugados pela globalização, que os obriga a competir com o mundo todo ao mesmo tempo para sobreviver, preferem assumir a sua condição de parentes pobres da Europa e viver no limiar na humanidade.

 

Não é de estranhar que tantos portugueses ilustres se tenham dedicado a pensar Portugal ao longo dos tempos. Afinal, andamos à deriva desde meados do século XVI, como Antero de Quental e Miguel Real mostraram, e ainda continuamos sem referências para o presente nem ideias para o futuro. O estado social não é só uma coisa complicada de quem já ninguém se interessa, é apenas mais uma importação estrangeira momentânea e passageira como todas as outras, e nada mais.

 

Portugal está morto, e todos agem como se isso não fosse verdade. Os discursos oficiais e as cerimónias, as eleições e os candidatos continuam. Portugal está morto, mas todos continuam numa necrofilia absoluta a falar e a agir como se este país estivesse vivo e de boa saúde. Até quando? Até quando esta farsa mal representada? Talvez não haja outra solução senão aquela que John Romão nos apresenta: a de, finalmente, deixar morrer este país. Talvez não haja outra maneira de construir outra coisa, algo a que possamos realmente chamar vida sem nos envergonharmos. É preciso que Portugal morra. É preciso que cada um de nós mate este falso Portugal que nos querem vender e que se apoderou das nossas entranhas. É preciso que Portugal morra, finalmente e de uma vez por todas, como morre um país a sério.

Morro como país

© Susana Paiva

Excertos de MORRO COMO PAÍS

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