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Assim que entramos na sala para assistir a VIOLÊNCIA – fetiche do homem bom, a última criação de Cláudia Lucas Chéu, somos transportados para um reality show onde os espectadores são os participantes. Tal como em qualquer programa de inspiração big brotheriana, os nossos comportamentos são manipulados através de instruções enviadas por uma câmara. As estrelas deste espectáculo, os gémeos Miguel e Gabriel, compõem a cena e preparam-nos para mais um dos seus serões de divertimento nocturno. Exactamente como numa telenovela, a acção é sadicamente interrompida para que o prazer seja prolongado o máximo possível.

 

Quando os apresentadores deste espectáculo chegam até nós, é todo um admirável mundo novo que se abre aos nossos olhos. Um futuro higiénico e asséptico, desprovido de qualquer sinal exterior de mácula, com corpos belos e caras frescas, sorrisos cinicamente autênticos, e a exacta correspondência entre o objectivo e o subjectivo. Não há espaço para a família, não há espaço para a cultura; é o mundo do futuro que se abre perante nós: o indivíduo purificado de toda a interferência social e cultural. O indivíduo só, ocupando um ponto unidimensional.

 

Não foram Aldous Huxley nem George Orwell que mais se aproximaram do que seria o mundo do futuro, apesar do reconhecimento de que ambos gozam actualmente. Foi Ray Bradbury, falecido apenas o ano passado, quem mais perto chegou do futuro que se está a tornar o nosso presente. Ele criou a distopia mais assustadora jamais escrita: um mundo que não sucumbia nem à manipulação genética, nem à manipulação linguística; um mundo que chegou ao que é sem nenhuma guerra, sem nenhuma imposição, sem que fosse necessário derramar uma gota de sangue.

 

O aparecimento da rádio, do cinema e da televisão; o aumento do número de imagens por minuto; a invenção de automóveis mais rápidos em mega-cidades ultra-alcatroadas; a expansão da publicidade em cartazes gigantescos; toda a aceleração do ritmo de vida das pessoas levou à condensação da informação, à simplificação da cultura. Primeiro, vieram as compilações; depois, os resumos; daí à reunião dos clássicos por definições num único dicionário foi um passo; os écrans de televisão aumentaram até cobrir paredes inteiras; os jornais passaram a ter só manchetes; a política tornou-se uma questão de frases; as aulas foram encurtadas e as humanidades abandonadas; e quando os livros começaram a incomodar os direitos das massas, foram finalmente abolidos. A higienização da cultura.

 

Miguel e Gabriel são o resultado deste processo evolutivo. São homens que cultivam um corpo maduro, mas alimentam-se de comida infantilizante (o leite, que só é um alimento apropriado para as crias dos mamíferos) ou ultra-processada (a junk food, rápida, gordurosa e lustrosa). São europeus com filosofias de vida, mas vivem de pseudo-raciocínios primários com referências culturais que não vão além da pornografia do óbvio, depois da morte da cultura europeia. São seres tridimensionais, mas o seu desconhecimento das múltiplas dimensões do humano leva-os a acharem-se deuses num universo unidimensional privado onde podem usar como quiserem objectos e pessoas.

 

Miguel e Gabriel são o excedente humano produzido pela sociedade capitalista actual. Tal como defende Anselm Jappe, a expansão de uma indústria de entretenimento levou a uma completa regressão antropológica. O relativismo cultural generalizado, resultado do abandono de uma hierarquia de valores por uma sociedade capitalista que fez da cultura uma mercadoria como qualquer outra, apreciada apenas em função da quantidade de trabalho que incorpora, levou a uma infantilização das sociedades. O narcisismo, anteriormente uma etapa do desenvolvimento humano que, como mostrou Freud, a criança tinha de superar para atingir a maturidade plena, tornou-se o epítome da sociedade contemporânea. A maturidade é activamente desvalorizada: ela é mesmo alvo de chacota social, um passadismo que é necessário evitar. Só o culto do imediato, sustentado pelos seus dois pilares, o consumo e a sedução, como bem nota Lipovetsky, interessa ao homem contemporâneo.

 

A violência, como mostra Zizek, não se resume ao enforcamento de Saddam Hussein em directo na televisão, ou a cocktails molotov atirados por anarquistas junto ao parlamento grego. Estas são expressões evidentes de violência, mas não são as únicas nem as mais importantes. Há que procurar as causas dessa violência em outras acções, também violentas, que podem não incluir banhos de sangue mas acarretar a destruição contínua de inúmeras vidas humanas, em toda a sua frágil humanidade. Imposições políticas e económicas impossíveis de cumprir podem ser tão ou mais violentas do que o fuzilamento de meia-dúzia de pessoas, pois podem afectar milhares e milhares de vidas em simultâneo e por um longo período de tempo.

 

Os gémeos Miguel e Gabriel representam não duas pessoas diferentes, mas as duas faces do mesmo eu, o eu unidimensional. Cada um deles é a mutilação dos impulsos negativo (Thanatos) e positivo (Eros) que existem em cada um de nós, como mostrou Freud. Miguel (Albano Jerónimo) é o impulso destruidor, perverso e sádico, capaz de racionalizar os seus instintos de qualquer maneira para justificar o seu narcisismo. Gabriel (Rúben Gomes) é o impulso criativo que, com referências culturais que não vão além de uns resquícios de moral judaico-cristã, sucumbe a qualquer argumento ou lógica minimamente racional, tornando-se uma presa conivente da perversão de Miguel. Lucas Chéu mostra-nos aquilo que já Freud nos dissera, impressionado com as consequências da primeira grande guerra: que a aposta na criação cultural é um meio eficaz para contrariar a barbárie. É porque o espírito da cultura europeia tão defendida por Miguel Real foi esquecido que se abre espaço à barbárie.

 

O espectáculo de Lucas Chéu é ainda uma pedrada no charco da cultura nacional. Contrariando todas as recomendações económicas e culturais, ele é fruto da criação de uma nova estrutura artística contemporânea, o Teatro Nacional 21. Um excelente exemplo de que todas as alturas são boas para apostar na cultura que trata o que é mais importante, desde que haja para isso vontade e disponibilidade. Quanto a nós, resta-nos agradecer e desfrutar.

Violência - fetiche do homem bom

© Bruno Simão

Trailer de VIOLÊNCIA - fetiche do homem bom

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